Um Puñado de histórias: um continente feito de suas mulheres
Edições e suas recepções: a literatura latino-americana em circulação
A revista Ventana Latina, projeto pertencente à Latin American House, tem como principal objetivo difundir a cultura latino-americana no Reino Unido. Foi pensando nisso que convidamos para essa edição a editora e tradutora brasileira Raquel Dommarco. Ela escreve sobre a sua experiência na direção da Revista Puñado, cuja edição é trimestral e está destinada à publicação de escritoras latino-americanas em atividade. Em seu interessante texto, Raquel aborda temas como as dificuldades e entraves materiais de coodenar uma revista independente no Brasil, o processo de pesquisa de escritoras latino-americanas e nos conta, em primeira mão, sobre os planos para as edições futuras.
Raquel, a Puñado e Ventana Latina têm em comum a certeza da qualidade artística e singularidade da produção latino-americana, bem como o compromisso de trabalhar para sua difusão e circulação. Dentre as escritoras publicadas na Puñado encontram-se a peruana Claudia Ulloa e a chilena Lina Meruane. Ambas as escritoras participaram do Hay Festival, realizado no País de Gales, Reino Unido, entre os dias 24 de maio e 3 de junho, proporcionando ao público inglês debates literários de alto nível.
Na edição de julho, Ventana Latina publicará entrevistas das duas escritoras concedidas especialmente para a revista e selecionará trechos de suas traduções e publicações aos três idiomas: português, espanhol e inglês. O intuito desta seleção é demonstrar exemplos fortuitos e efetivos de bem-sucedidas experiências de circulação literária entre os dois hemisférios, esperando que com essa iniciativa a boa literatura continue a circular mais e melhor.
Um Puñado de histórias: um continente feito de suas mulheres
Raquel Dommarco
Doze países, três edições, dez colaboradoras, doze entrevistas, quatorze mulheres escritoras: essas são as coordenadas da revista Puñado, que se propõe a publicar trimestralmente contos de mulheres da América Latina – esse nosso continente que são vários dentro de um só.
Inauguramos durante a FLIP de 2017 (um pouco tímidas com nossos 150 exemplares, que meses depois ganharam uma reimpressão) e a cada nova edição temos conseguido contar a história do nosso continente através dos contos de múltiplas narradoras, sob a ótica de temas que intuitivamente vamos observando como motes que se repetem na escrita das mulheres latino-americanas: Exílios (número 1), Delírios (número 2), Família (número 3), Rituais (número 4, a ser lançado). Sentimos que vamos, pouco a pouco, abrindo um canal por onde as vozes dessas mulheres, sua força, a contundência e a crueza da sua literatura ecoam na nossa língua, dentro do nosso polissistema literário, deixando-o mais rico em diversidade, menos homogêneo, hierárquico. Porém, mais bonito ainda que isso, é que conseguimos, nesse curto tempo, estabelecer uma rede de colaboração entre mulheres do Brasil e de fora dele, que conversam e se apoiam ativamente, trazem indicações, aportam ideias, acreditam e ajudam na divulgação do projeto. Afinal, quem é que não gosta de se sentir representado?
Equipe
Quando a designer, fotógrafa e escritora (e amiga pessoal, de muitos anos e aventuras) Laura Del Rey me chamou para conversar e dar forma a um novo projeto que pretendia reunir (e traduzir, o que seria inédito para ela, já multitalentos) mulheres que compartilhassem a nossa geografia, mas não o nosso idioma, ficou evidente que, mais cedo ou mais tarde, iria acontecer e que era preciso, necessário, fundamental que esse projeto existisse. Tínhamos uma forte convicção de estar no lugar, na hora e nos caminhos certos. E a partir daí fomos afinando e refinando as ideias, e o processo em si.
A partir do segundo número, somamos ao time a revisora Aline Caixeta, que também é escritora e tradutora, cujo olhar primoroso é fundamental no resultado final do que publicamos. Também a partir do segundo número, passamos a contar com nossas colaboradoras nas entrevistas, mulheres convidadas (escritoras, roteiristas, pesquisadoras, tradutoras), que participam prontamente mandando perguntas para as autoras e enriquecendo substancialmente o diálogo entre os nossos países vizinhos – que às vezes parecem tão distantes, separados pela língua, pelo preconceito, pela má vontade, enfim, por tanta coisa. Assim, ao longo de três edições, a família Puñado foi ganhando novos braços e novas vozes, e, felizmente, novos leitores também.
Pesquisa e Realização
Para dar o pontapé inicial, pesquisamos, lemos muito, fomos sendo conquistadas e, algumas vezes, arrebatadas pelas nossas autoras. Gostaria de poder dizer que o percurso delas até nós (e vice-versa) foi natural, até intuitivo. Mas, infelizmente, isso não seria verdade. No início, as antologias, amplamente compostas por homens, pouco ou nada nos ajudavam. Fazer uma curadoria das mulheres que estivessem ativas, escrevendo e publicando em ou de países da América Latina, mostrou-se ser uma tarefa que requeria mais tempo e paciência do que tínhamos previsto. Ainda assim, conseguimos chegar num primeiro recorte com textos que nos agradavam bastante, que haviam conquistado algum prestígio em seus países de origem, ainda que, em alguns casos, as autoras não vivessem mais neles.
A temática da escritora imigrante, que perspassava muitos dos textos com os quais tivemos contato no início, influenciou a escolha do nosso primeiro tema: Exílios. Também era importante para nós que as autoras estivessem ainda vivas, justamente para que pudéssemos conversar com elas, fazer perguntas e obter respostas.
Laura, então, começou a pensar nesse design lindo, que parece que só vai melhorando a cada edição. Eu comecei a esboçar um contrato simples de cessão de direitos autorais para ser enviado às autoras com a nossa proposta. A revista deixava de ser uma ideia e pouco a pouco se materializava. Com as nossas mãos, abriríamos uma vereda, ainda que humilde, por onde escritoras conseguiriam passar e ocupar seu espaço de direito chegando aos seus leitores: esse era o sonho da Puñado, nosso motivo de existir. Conseguimos o primeiro ‘sim’, da argentina Inés Fernández Moreno, que nos cedia seu ‘Carne de Exportación’, uma bem humorada reflexão, com pitadas de absurdo, sobre a vida de imigrante latino-americano. A este, seguiu-se nada menos que o ‘sim’ da mexicana – e ganhadora do Prêmio Cervantes – Elena Poniatowska Amor, que nos cedeu o desconcertante ‘Estado de sitio’. Éramos só euforia.
Então, caiu aos nossos pés a granada. As autoras deste primeiro recorte tinham mais em comum do que o gênero e a geografia: eram todas elas, sem exceção, brancas. Isso nos entristeceu, nos alarmou. Porque estava claro que, por muito que gostássemos dos textos, não tínhamos em nossas mãos um grupo que representasse de forma justa o nosso continente. Era um problema muito sério, que precisávamos encarar de frente. Paramos as máquinas, demos um passo atrás e voltamos para a pesquisa. Esse foi um momento decisivo de tomada de consciência do nosso papel editorial enquanto ferramenta de representação, de democratização de espaços e lugares de fala. Ou fazíamos o nosso melhor para tentar representar todas, ou não estaríamos representando nenhuma.
Toda essa trajetória serviu para descobrirmos na prática que os problemas de representatividade são uma realidade brutal do nosso continente. Da mesma forma que encontrar as escritoras que se encaixassem nos temas e premissas da nossa ‘antologia interminável’ demandava uma quantidade de tempo e recursos consideráveis (as obras ‘delas’ são de fato menos disponíveis, comentadas e noticiadas do que as ‘deles’), a dificuldade dobrava quando se tratava de autoras não brancas. Mas não porque elas não existissem, muito pelo contrário.
Também chama a atenção a diáspora da escritora latina contemporânea. Oito das nossas quatorze autoras são, há mais ou menos tempo, imigrantes em países da América do Norte ou Europa, quase sempre porque ali conseguem melhores oportunidades de trabalho e publicação. Entre as autoras não brancas publicadas ao longo das três edições, apenas uma delas ainda vive em seu país de origem, tendo consolidado ali a carreira como um dos maiores nomes da literatura nacional.
Mesmo diante desse cenário desfavorável, o continente nativo deixa uma marca indelével não apenas na escrita, mas na maneira de estar no mundo de cada uma. A jovem escritora Julianne Pachico, por exemplo, nasceu na Inglaterra (onde reside hoje), mas passou a infância e a adolescência na Colômbia. Ela nos conquistou com seu ‘Honey Bunny’ que, apesar de escrito em inglês (publicado originalmente na revista The New Yorker), está embebido do país da infância, explorando preconceitos e clichês da nossa identidade perante o estrangeiro de maneira surpreendente e absolutamente comovente. Já Claudia Ulloa, escritora peruana radicada na Noruega, narra uma entrevista de emprego (essa situação sempre desconfortável) com bom humor, beirando o non-sense e com pitadas de autobiografia, incluindo o maravilhoso gato Kokorito, que você pode conhecer no Instagram de Claudia. ‘Passarinho’ (tradução de Pajarito) foi publicado pela primeira vez no Brasil na segunda edição da Puñado (Delírios).
Em nossa primeira edição, publicamos também ‘Sangue de Nariz’ (Sangre de Nariz) da autora chilena Lina Meruane, hoje professora da Universidade de Nova York. Lina estreou no Brasil em 2016, quando a editora Cosac Naify publicou ‘Sangue nos olhos’, com tradução de Josely Vianna Baptista.
Edwidge Danticat, hatiana residente nos Estados Unidos há décadas (onde se graduou em Literatura Francesa numa universidade da celebrada Ivy League), escreveu toda a sua obra em inglês sem nunca se desvencilhar da herança cultural do lugar de origem. Da coletânea ‘Krik-Krak’ (título retirado de uma popular expressão haitiana, que remete à oralidade presente na narrativa), traduzimos ‘Entre a piscina e as gardênias’ (Between the pool and the gardenias), um verdadeiro tesouro literário.
Sobre o projeto e planos futuros
Para a nossa próxima edição, na qual celebraremos a passagem completa por quatro estações, teremos novidades. Vamos nos arriscar um pouco mais e explorar formatos que ainda não tivemos a oportunidade de abarcar, além de contar, excepcionalmente, com contos inéditos de escritoras brasileiras.
Aos poucos, a Editora Incompleta foi fazendo a tiragem crescer – embora ainda sejamos pequenas – , o que na atual conjuntura do país é praticamente um milagre. A cada nova edição as dificuldades burocráticas só aumentam, da realização do pagamento das autoras em moeda estrangeira ao registro ISSN e as dificuldades de postagem.
Mas fazendo um balanço, gostamos de pensar que temos, sim, motivos para comemorar.
Estamos cheias de planos para ampliar a família Puñado nos próximos meses (ideias, tiragens, projetos, parcerias), e, é claro, isso nos deixa muito ansiosas, preocupadas com os recursos e de onde vamos tirar tanto tempo (sim, precisamos de outros empregos/trabalhos para nos manter, e à Puñado) para nos dedicar a toda essa empreitada. Mas continuamos tão animadas a cada ‘sim’ quanto da primeira vez em que nos demos conta que nossos sonhos virariam uma revista de verdade; e igualmente empenhadas em persistir, e prosseguir traçando o mapa do nosso continente a partir das mulheres que o escrevem.
As palavras delas são a nossa maior riqueza.