O belo e potente voo de Lina Meruane no Brasil
Por Livia Deorsola.
Livia Deorsola é tradutora e editora brasileira especializada em autores hispano-americanos. Entre os anos 2012 e 2016 coordenou um dos projetos editoriais brasileiros mais proemientes de difusão da literatura hispano-americana no Brasil a frente da casa editorial Cosac Naify, publicando autores como Selva Almada, Alan Pauls, Pablo Neruda,Lina Meruane, Mario Bellatin, Alejandro Zambra, Octavio Paz, José Donoso y Rodrigo Fresán. Para esta edição, Deorsola nos presenteia com seu testemunho sobre a publicação de Sangue no Olho, romance da escritora chilena Lina Meruane, uma das entrevistadas desta edição.
Quando li o romance Sangue no olho, da chilena Lina Meruane, eu trabalhava na Companhia das Letras, com obras de não ficção. A editora acabara de vender parte de suas ações à Penguin e começava a se firmar, então, como o maior grupo editorial do Brasil, o que se confirmaria pouco depois, com a aquisição de outros selos e a incorporação de parte de sua estrutura pela Randon House, que, por sua vez, havia adquirido a Penguin. No entanto, apesar de seu tamanho e poderio crescentes, naquele tempo (2012) havia na Companhia um olhar quase inexistente ao que estava acontecendo no panorama da literatura latino-americana contemporânea. Ainda vigoravam firmes e fortes autores como Borges, consagradíssimo, porém longe de ser um estouro de vendas, e Bolaño, um clássico cult – quem, aliás, sobre sua conterrânea, disse: “Existe uma geração de escritoras chilenas que promete. Lina Meruane é uma delas” –, mas, nos últimos tempos, nada de novo na vizinhança chamava a atenção da mais nova gigante. O foco era outro, e tudo bem.
Fiquei sabendo do romance de Lina – para mim, uma desconhecida escritora chilena radicada em Nova York – ao ler as páginas do jornal argentino Clarín. Lá estava uma excelente resenha do livro, assinada já não me lembro por quem. O que me lembro, isso sim, foi da forma entusiasmada com que o resenhista descreveu a potência literária do livro, ancorada na voz de uma mulher que inicia sua trajetória como vítima de uma enfermidade ocular e, aos poucos, se transforma numa espécie de carcereira de quem a ama. De fato, meu faro se confirmou: o romance é um incrível thriller psicológico talentosamente manejado pelas mãos de uma autora que conhece bem a cumbuca (leia-se: tradição) na qual resolve colocar a mão: a cegueira como acesso a outra espécie de dom. Para arrematar, Lina acerta o tom ao pontuar Santiago e Nova York como personagens importantes da narrativa.
Pois bem: pedi o original do livro à Claudia Bernaldo de Quirós, agente literária da Lina (também representante da argentina Selva Almada, igualmente desconhecida no Brasil e de quem publicamos o maravilhoso O vento que arrasa, com tradução de Samuel Titan Jr.), ainda com alguma esperança de emplacar a publicação na Companhia. Nada muito promissor se desenhou à minha frente.
Poucos meses depois, recebi um convite para voltar a trabalhar na Cosac Naify, onde tinha ficado por seis anos, antes de ir para a Companhia das Letras. A ideia era que, entre outros projetos, eu ficasse responsável por montar um catálogo com bons autores latino-americanos da atualidade. Não tive dúvidas: Lina Meruane foi a estreia dessa empreitada, que só não rendeu mais frutos porque, dois anos depois, a Cosac Naify fechava suas portas, com um aviso de demissão coletiva dado pelos jornais, sem que nenhum (ou quase nenhum) funcionário tivesse sido informado previamente. Mas, antes disso, o trabalho foi bonito à beça, do começo ao fim: tradução impecável da Josely Vianna Baptista e capa com fotografia do Vicente de Mello. Não poderia ter sido melhor.
E hoje ouço, aqui e acolá, o nome da Lina Meruane pipocando por aí, na boca de editores que traçam novos projetos com ela, de tradutores e – o que mais me dá alegria – de leitores. Se sentir orgulho é um pecado, peco com gosto sempre que vejo a Lina voando alto em céus brasileiros.
Livia Deorsola (1979) cursou jornalismo na Universidade Estadual Paulista (unesp) e letras na Universidade de São Paulo (usp), completando seus estudos em literatura espanhola na Universidade de Barcelona. Como jornalista, foi colaboradora da revista Entrelivros. Iniciou a carreira de editora de livros na Cosac Naify. Trabalhou na Companhia das Letras e voltou a integrar a equipe editorial da Cosac Naify, até seu fechamento. De família argentina, voltou-se sobretudo à literatura latino-americana, publicando no Brasil os argentinos Selva Almada, Diego Vecchio e Rodrigo Fresán, os chilenos Lina Meruane, Jorge Edwards e Hernán Rivera Letelier e a uruguaia Inés Bortagaray, entre outros. Atua também como tradutora do espanhol, assinando as traduções de autores como Adolfo Bioy Casares, Daniel Sada e Hernán Ronsino.